domingo, 23 de maio de 2010

Democracia no Irã

Meu grande amigo Rodrigo Pinheiro afirmou em um dos textos anteriores que o Irã não era uma democracia. Argumentou em seu favor o fato de existir um aiatolá supremo, que não sai do poder.
Em contrapartida, podemos alegar que existe um sistema de freios e contrapesos na República Islâmica, exercida entre o aiatolá, o presidente e o conselho de ansiãos.

Nosso caro e sempre interessado professor Ronaldo Lobão nos enviou um texto que trata da democracia no Irã. Estou convencido de que sua leitura tornará o debate mais rico e esclarecedor para ambas as partes.

O texto será trancrito na íntegra, devido à sua grande contribuição ao entendimento do outro (outra cultura).

Obrigado professor Lobão.


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ASPECTOS DO SISTEMA POLÍTICO ISLÂMICO


Por Sayyd Abul A'la Al-Maududi


O sistema político do Islam baseia-se em três princípios: Tawhid, a Unicidadde de
Deus, Risalat, a profecia, e Khilafat, o califado. Para compreender os diferentes
aspectos da política islâmica, é preciso entender, primeiro, estes três princípios.


Tawhid


Unicidade significa que só um Deus é o Criador, Sustentador e Senhor do Universo, e
de tudo o que existe nele. A soberania do reino é conferida a Ele, somente. Só Ele
tem o direito de autorizar ou proibir o que quer que seja. A adoração e a obediência só são devidas a Ele, e ninguém pode ser associado a Ele. Por isso, não depende do ser humano decidir sobre os objetivos de sua existência, ou prescrever os limites de sua
autoridade no mundo. Ninguém tem o direito de tomar decisões por nós. Este direito só
pertence a Deus, que nos criou e nos dotou de faculdades físicas e mentais, e nos
forneceu todo o necessário para garantir nossa sobrevivência na terra.
Este princípio da Unicidade de Deus nega completamente o conceito de Soberania
legal e política dos seres humanos, seja do ponto de vista individual, seja do ponto de
vista coletivo. Ninguém neste mundo pode reivindicar a soberania como uma coisa
completa, seja um ser humano, uma família, uma classe ou grupo de pessoas, ou,
inclusive uma raça humana. Só Deus é Soberana, e Seus Mandamentos são a lei do
Islam.


Risalat


O meio pelo qual recebemos a lei de Deus é conhecido como risalat, profecia. São
duas as suas principais fontes:

1. O Livro, no qual Deus expôs sua Lei; e

2. O exemplo e a interpretação autorizada do Livro de Deus pelo Profeta, através de
sua palavra e feitos, na qualidade de representante de Deus. Os amplos princípios no
qual o sistema de vida humano deve estar baseado, foram estabelecidos no Livro de
Deus. Além disso, o Profeta estabeleceu para nós um modelo do sistema de vida
islâmico, fornecendo os detalhes onde se faziam necessários. A combinação desses
dois elementos, de acordo com a terminologia islâmica, é chamada de shari'ah.


Khilafat


No que se refere ao khilafat, que em árabe significa representação, a posição e lugar
do homem, de acordo com o Islam, é o de representante de Deus na terra, Seu vicegerente,
isto é, em razão dos poderes que foram delegados a ele por Deus, é-lhe
exigido exercitar a autoridade divina neste mundo, dentro dos limites estabelecidos por
Deus.
Para se entender melhor como isto funciona, tomemos agora, como exemplo, o caso
de uma loja que seja administrada por alguém em nome de seu proprietário. São
quatro as condições que invariavelmente devem ser cumpridas: (1) a propriedade da
loja é do titular, e não do administrador encarregado de gerenciá-la; (2) o
administrador toma as decisões de acordo com as instruções do titular; (3) a
administração e a execução serão feitas dentro dos limites estabelecidos pelo tilular;

(4) o administrador, na preservação do que lhe foi confiado, deverá executar a
vontade do titular e cumprir o determinado por ele. Estas quatro condições são
inerentes ao conceito de "representação", que deve vir à mente, tão logo se pronuncie
esta palavra. É isto que o Islam pretende, quando afirma que o homem é o califa de
Deus na terra. Estas quatro condições também estão incluídas no conceito de khilafat.
O estado que seja estabelecido de acordo com esta teoria política, será de fato um
califado humano, sob a Soberania de Deus, e terá que satisfazer os propósitos de
Deus, trabalhando na terra de Deus, dentro dos limites prescritos por Ele, e na
conformidade com Suas instruções e mandamentos.


Democracia no Islam


O termo khilafat torna claro que nenhum indivíduo, ou dinastia, ou classe, pode ser
khalifah (califa), porque a autoridade do califado é dada ao grupo , à comunidade,
como um todo, que está preparada para satisfazer as condições de representação,
depois de aceitar os princípios do tawhid (Unicidade de Deus) e do Risalat (Profecia).
Tal sociedade leva a responsabilidade do califado como algo completo, e cada um de
seus indivíduos divide o Califado Divino. Este é o ponto de onde a democracia
começa no Islam.
Em uma sociedade islâmica, cada pessoa desfruta dos direitos e poderes do califado, e
deste ponto de vista, todos são iguais. Ninguém tem prevalência sobre o outro, nem
pode privar ninguém de seus direitos e poderes.
A intervenção nos assuntos de estado deverá ser feita em consonância com a vontade
dos indivíduos, e a autoridade do estado corresponderá somente a um aumento dos
poderes que os indivíduos delegarem. Sua opinião será decisiva na formação do
governo, que será dirigido com seus conselhos, e de acordo com seus desejos. Aquele
que tem a confiança de todos compromete-se com os deveres e obrigações do califado
em nome de todos, e quando perder esta confiança terá de deixá-lo e aceitar esta
vontade. Neste sentido, o sistema político do Islam é uma forma perfeita de
democracia. O que distingue a democracia islâmica da democracia ocidental é que,
enquanto esta está baseada no conceito de soberania popular, aquela se apoia no
princípio de khilafat popular. Na democracia ocidental, a pessoa é soberana, no Islam a
soberania é conferida a Deus, e a pessoa é o Seu califa, ou representante. Na
democracia ocidental, as pessoas traçam as suas próprias leis (shari'ah), na islâmica,
têm que seguir e obedecer as leis (shari'ah) dadas por Deus, por intermédio de Seu
Profeta. Numa o governo se compromete a realizar a vontade das pessoas, na outra o
governo, e as pessoas que o formam, realizam o propósito de Deus.
Em resumo, a democracia ocidental é uma espécie de autoridade absoluta, que
exercita seus poderes de um modo livre e descontrolado, enquanto que a democracia
islâmica é subserviente à Lei Divina e exercita sua autoridade na conformidade com os
mandamentos de Deus, e dentro dos limites prescritos por Ele.


O Propósito do Estado Islâmico


A seguir, um exemplo do tipo de estado que se constrói sobre os pilares do Tawhid,
Risalat e Khilafat.
O Alcorão claramente afirma que a meta e o objetivo do estado são o estabelecimento,
manutenção e desenvolvimento dessas virtudes, com as quais o Criador do
Universo quer dotar a vida humana, e a prevenção e erradicação desses males, cuja
presença na vida é totalmente contrária à vontade de Deus. É um estado onde
predominam a justiça, a bondade, a virtude, o êxito e a prosperidade, e onde se
impeça qualquer espécie de exploração, injustiça e desordens, que aos olhos de Deus
são prejudiciais à vida de Suas criaturas. Assim, ao situar para o ser humano este
ideal elevado, o Islam nos fornece um esquema claro de seu sistema, mostrando as
virtudes desejáveis e os vícios indesejáveis. Tendo em mente este esquema, o estado
islâmico pode planejar uma felicidade programada para cada época e para cada
circunstância.
O Islam persistentemente nos mostra que os princípios de moralidade têm que ser
observados a todo custo e em todas as etapas da vida. E por isso, ele é um sistema
inalterável para que o estado possa basear sua política na justiça, na verdade e na
honestidade. Em hipóstese alguma o Islam tolera a fraude, a falsidade e a injustiça.
Da mesma forma que as relações do estado com os indivíduos impõem obrigações
mútuas, também no que se refere às relações do estado com os outros estados, a
verdade e a justiça devem ser priorizadas. Assim, os contratos e as obrigações devem
ser cumpridos, a condução dos negócios deve ser pautada por medidas e padrões
uniformes, pelo respeito aos direitos dos outros, pelo uso do poder e da autoridade
para que a justiça e a verdade prevaleçam sempre e deve ter em mente que o poder
do estado é uma delegação de Deus, e que aquele que o exerce será chamado a
prestar contas de suas ações a Deus.


Direitos Fundamentais


Ainda que um estado islâmico possa ser estabelecido em qualquer parte da terra, o
Islam não procura limitar os direitos humanos ou privilégios aos limites geográficos de
seu próprio estado. O Islam estabeleceu alguns direitos fundamentais universais
para a humanidade, como um todo, os quais devem ser observados e respeitados sob
qualquer circunstância,não importa onde a pessoa resida, se dentro de um estado
islâmico ou fora dele, se o estado está em paz ou em guerra. O sangue humano é
sagrado e não pode ser derramado sem uma justificativa. Não é permitido oprimir as
mulheres, crianças, velhos, doentes e feridos. A honra e a castidade das mulheres
devem ser respeitadas a qualquer preço. O faminto deve ser alimentado, o despido
deve ser vestido, o ferido ou o doente devem ser tratados, não importando se são de
uma comunidade islâmica ou não , ou até que sejam inimigos. Estas, e algumas
outras disposições, foram estabelecidas como direitos fundamentais do homem, em
razão de sua condição de ser humano, e devem ser garantidas pela Constituição de
um estado islâmico. Inclusive, os direitos de cidadania no Islam, não estão limitados às
pessoas nascidas dentro dos limites de seu estado e sim são outorgados a cada
muçulmano, sem levar em consideração seu lugar de nascimento.
Portanto, um muçulmano se converte em cidadão de um estado islâmico assim que
puser o pé em seu território, com a intenção de viver nele e por isso, passa a
desfrutar de direitos iguais de cidadania, da mesma forma que aquele que tem esses
direitos, decorrentes do nascimento. A cidadania tem que ser comum entre todos os
países islâmicos que possam existir no mundo e um muçulmano não necessitará de
qualquer passaporte para entrar ou sair dele. Cada muçulmano deve ser considerado
elegível e adequado para o exercício de todas as posições da mais alta
responsabilidade dentro do estado islâmico, sem nenhuma distinção de raça, cor ou
classe.
O Islam também concedeu certos direitos para que os não muçulmanos possam viver
dentro das fronteiras de um estado islâmico e estes direitos têm que integrar,
necessariamente, a Constituição Islâmica. De acordo com a terminologia islâmica,
tais não muçulmanos são chamados de "dhimis" (cidadão não muçulmano) e devem
ser respeitados e protegidos exatamente como um cidadão muçulmano, no tocante à
lei civil ou penal, não fazendo diferença em relação ao cidadão muçulmano. O Estado
Islâmico não interferirá com a lei perssoal dos não muçulmanos. Terão liberdade
completa de consciência e serão livres para exercitar seus ritos religiosos e
cerimônias, da forma que queiram. Não só têm direito de propagar sua religião como
também têm o direito inclusive de criticar o Islam dentro dos limites estabelecidos pela
lei e pela decência.
Estes direitos têm uma natureza irrevogável. Os não muçulmanos não podem ser
privados deles, a menos que renunciem ao convênio que lhes garante a cidadania.
Qualquer que seja o alcance da opressão que um estado não muçulmano possa
perpetrar contra os cidadãos muçulmanos, não é permitido a um estado islâmico
cometer a menor injustiça contra seus cidadãos não muçulmanos. Mesmo que todos os
muçulmanos fora dos limites do território islâmico sofram qualquer tipo de injustiça, o
estado islâmico não pode derramar injustamente o sangue de um único cidadão não
muçulmano que viva dentro de seus limites territoriais.


Executivo e Legislativo


A responsabilidade pela administração do governo, em um estado islâmico, é confiada
a um líder, ou chefe, ou guia (emir), que pode assemelhar-se ao presidente ou ao
primeiro-ministro de um estado moderno democrático. Todos os homens e mulheres,
adultos que acreditam nos fundamentos da constituição, têm direito de eleger o chefe
de estado.
Os requisitos básicos para a eleição de um emir são: gozar da confiança de um grande
número de pessoas com relação ao seu conhecimento e sua compreensão do espírito
do Islam; possuir o atributo islâmico da temência a Deus e ser dotado com as
qualidades de homem de estado.
Em resumo, deve ser virtuoso e capaz. Os membros da shura, conselho consultivo,
também são eleitos pelas pessoas para assistir ao emir e guiá-lo na administração do
estado. Caberá ao emir administrar o país com o conselho desta shura. O emir só
pode permancer no cargo enquanto desfrutar da confiança das pessoas e terá que
deixar seu posto quando perder essa confiança. Porém, enquanto conservar essa
confiança terá autoridade para governar e exercitar os poderes de governo,
consultando a shura e dentro dos limites estabelecidos pela shari'ah. Cada cidadão terá
o direito inalienável de criticar o emir e seu governo e, para isso, poderá utilizar-se
de todos os meios razoáveis para a difusão à opinião pública.
A legislação em um estado islâmico estará restrita aos limites impostos pela shari'ah.
Os mandamentos de Deus e de Seu profeta têm que ser aceitos, e nenhum
corpo legislativo pode alterar ou modificar seus postulados, ou elaborar leis
incompatíveis com eles.
Em relação aos mandamentos que sejam passíveis de duas ou mais interpretações,
impõe-se averiguar o propósito verdadeiro da shari'ah. Em tais casos, deve-se
recorrer a pessoas que comprovadamente tenham um conhecimento especializado da
shari'ah. Por isso, tais questões devem ser submetidas a um subcomitê do Conselho
Consultivo, composto por homens conhecedores da Lei Islâmica.
Um grande campo ainda estará disponível para a legislação, sobre questões não
abrangidas por um mandamento específico da shari'ah. Nesse caso, o conselho
consultivo, ou corpo legislativo, estará livre para legislar em relação a esses assuntos.
No Islam, o Judiciário não está situado na esfera de controle do executivo. Sua
autoridade deriva diretamente da shari'ah, e é responsável perante Deus.
Os juízes são, sem dúvida, designados pelo governo, mas, uma vez que o juiz que o
juiz ocupe seu lugar no tribunal, terá que administrar a justiça entre as pessoas de
acordo com a lei de Deus, de modo imparcial, e os órgãos e funcionários do governo
estarão fora de sua jurisdição legal, até ao ponto em que a mais alta autoridade
executiva do governo possa ser chamada a comparecer em uma corte legal, seja como
reclamante ou reclamado, da mesma forma que qualquer outro cidadão.
Governantes e governados estão submetidos à mesma lei e não pode haver
discriminação com base em posição, poder ou privilégio. O Islam luta pela igualdade e
escrupulosamente se une a este princípio nos domínios social, econômico e político por igual.

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